Sabemos que o Brasil mata cerca de 35 mil pessoas por ano em sinistros de trânsito. Os dados também demonstram que cerca de 20% dessas mortes estão nas rodovias federais e 80% estão nas cidades ou rodovias estaduais.
Mesmo nas rodovias federais, os dados coletados pela PRF (Polícia Rodoviária Federal) e analisados pela Senatran (Secretaria Nacional de Trânsito) demonstram que as mortes estão localizadas, essencialmente, em passagens urbanas das rodovias.
Está na cidade, portanto, o grande problema e, claro, estão também as soluções para reduzirmos essas mortes que são, destaque-se, todas elas, evitáveis. Tratar sinistros de trânsito como evitáveis, aliás, vai ao encontro da abordagem já consolidada entre especialistas, organismos internacionais e das experiências bem sucedidas, como Visão Zero e Sistemas Seguros.
Ainda assim, muitos profissionais do sistema de trânsito insistem em tratar os sinistros e mortes como um fato corriqueiro do sistema de mobilidade. Em certos casos, abordam as mortes como um problema de moralidade individual, enfatizando o fator da culpa subjetiva do motorista ou condutor. A solução fica restrita à uma ideia abstrata de “educação” do condutor, pedestre ou ciclista.
Mas a educação para o trânsito não deve ser vista como único fator ou mesmo como fator determinante na redução da mortalidade.
O Manual de Segurança Viária do Banco Mundial (Guide for Road Safety Interventions: Evidence of What Works and What Does Not Work), de 2020, apresenta a conclusão de que campanhas educativas com foco e ligadas diretamente a ações de fiscalização até têm comprovada eficácia, mas a tradicional educação nas escolas ou para motoristas já habilitados pode até aumentar a tolerância ao risco.
A limitada eficácia das campanhas educativas genéricas está relacionada ao fato de que informar sobre os riscos não necessariamente mudará o comportamento dos motoristas. O conhecimento das regras ou até das consequências de se submeter a riscos evitáveis não elimina o fato já comprovado pela ciência comportamental de que todos estamos sujeitos a vieses, hábitos consolidados, erros de avaliação sobre risco e até mesmo um comportamento irracional.
O foco exagerado na educação, porém, é uma posição extremamente confortável para o gestor da via, na medida em que tira de sua responsabilidade a redução da morte no trânsito, gerando uma certa apatia da sociedade civil, que deixa de cobrar do poder local as ações que efetivamente salvam vidas.
Por isso o tema, que deveria estar no centro das discussões urbanas, passa completamente despercebido nas campanhas eleitorais municipais.
Isso porque apesar da repetida frase de que o “erro humano” é causador da maioria dos sinistros, a abordagem em sistemas seguros defende que devemos tratar esse dado como pressuposto: o ser humano erra.
Assim, todo o sistema viário deve estar preparado para lidar com o erro ou mesmo com a desobediência dolosa ou culposa (que terá campo próprio de aferição no ambiente policial ou judicial).
A gestão de segurança viária não pode se confundir com a necessária atuação do sistema judicial e da aplicação da lei penal em casos específicos. A impunidade certamente tem influência nos comportamentos de risco, porém não pode ser essa a abordagem que deve aprimorar o sistema viário, para que erros sejam mitigados e que suas consequências não sejam fatais.
Tratar os pontos críticos, verificando as causas do sinistro de um ponto de vista objetivo, para evitá-las no futuro. É esse o Norte do Pnatrans (Plano Nacional de Redução de Lesões e Mortes), que aponta as boas práticas a serem seguidas por gestores brasileiros, tendo a Senatran como sua coordenadora e prevendo a educação apenas como um entre seis eixos de atuação: gestão de trânsito, vias seguras, segurança veicular, atendimento às vítimas e fiscalização.
Do ponto de vista dos municípios, a educação está presente, mas os eixos de vias seguras e de fiscalização não podem ser negligenciados. Mais especificamente, no que diz respeito ao uso da via, o tratamento de áreas com alto volume de trânsito de pedestres, áreas escolares e hospitalares, gestão e fiscalização da velocidade e acalmamento do tráfego se somam às questões tradicionais da infraestrutura de segurança viária, como sinalização eficiente, medidas moderadoras de velocidade, passagem segura de pedestres e trânsito seguro de ciclistas.
Para além do que já temos institucionalizado no Brasil, devemos também nos encaminhar para o tratamento do ambiente urbano como um todo, inserindo a gestão de segurança viária como um problema central da gestão da cidade.
Ao incentivar o uso do transporte coletivo, aumentando a sua qualidade e eficiência, por exemplo, certamente a cidade irá desincentivar o uso de automóveis ou motocicletas (essas, aliás, um grave problema de segurança).
Mobilidade, edificações, Plano Diretor, zoneamento, micromobilidade: temas de gestão urbana estão diretamente ligados ao uso de carros e motos e, portanto, à redução de sinistros.
A Senatran, ao mesmo tempo em que assessora os municípios com elaboração de manuais e consultoria, facilita o processo de integração e divulga o Pnatrans, também passa a ter um papel ativo com a revisão feita pelo Contran em 2023. Dar transparência aos dados e às metas, aprimorando a divulgação dos números de sinistros fatais e de engajamento dos órgãos no Plano Nacional, dando ao cidadão e aos órgãos de controle os elementos necessários para a devida cobrança e inserindo a questão da segurança viária na agenda da cidade.
Essa é uma orientação da atual gestão do Ministério dos Transportes, que preside o Contran, e também atua na gestão direta das rodovias federais, promovendo a retomada de investimentos em segurança viária, incluindo fiscalização, tratamento de pontos críticos, contornos de municípios e áreas de escape, tanto no que diz respeito às competências do DNIT quanto nas políticas de concessões rodoviárias.
O trânsito seguro é dever de todos. Não somente daqueles que conduzem seus veículos ou trafegam nas ruas, mas daquele que é responsável pela gestão das vias e pela administração das cidades. Se negligenciamos o transporte coletivo, o cidadão será incentivado a buscar mobilidade individual. Se trocamos sinalização eficiente por velocidade alta, o incentivo a comportamentos de risco aumenta. Cada escolha tem uma consequência, e o cidadão brasileiro precisa saber que pode – e deve – cobrar mais segurança no trânsito da sua cidade.
Fonte: Com informações do site agenciainfra.com, matéria publicada 03 de julho de 2024.