Usuários criticam dispensa de metodologia para apurar abusos da sobre-estadia de contêineres

Antaq manteve status quo por entender que não há necessidade de criar norma para estabelecer critérios para identificar abusividade em cobranças quando houve denúncias dos tomadores de serviço

Associações que representam usuários de portos criticaram a decisão da diretoria da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) que não identificou elementos que comprovem de forma categórica casos de abusividade na cobrança de sobre-estadias de contêineres. Representantes de embarcadores analisam quais os impactos para os tomadores do serviço logístico e de que forma podem contestar os argumentos adotados pelo colegiado na última semana. Os usuários contestam, entre outros pontos, como é possível para a agência reguladora avaliar se o preço é abusivo sem uma norma para embasar tecnicamente esses critérios e dar segurança jurídica a essas análises.

A Antaq concluiu que não há abusividade de preços e que a prática de cobrança de sobre-estadia de contêineres no Brasil, em termos de custos e situações de cobrança, está ajustada à prática internacional, com exceção do Porto de Xangai, na China, onde são praticados preços inferiores. Na reunião de setembro de 2022 sobre esse processo, aberto em 2020, o diretor-relator à época, José Renato Fialho, recomendou a produção de um normativo por parte da Antaq. Na sessão da semana passada, porém, prevaleceu o voto da diretora-revisora, Flávia Takafashi, que propôs não entrar no mérito de qual seria a natureza da sobre-estadia e concluiu que não há necessidade de uma norma por não ter sido observada abusividade em tais práticas.

Após a decisão, a Associação Brasileira dos Usuários de Transportes e da Logística (Logística Brasil) estuda quais providências serão adotadas, A avaliação é que a diretoria da Antaq retrocedeu significativamente na regulação dos armadores por ter desconsiderado o estudo da equipe técnica, contidas na Análise de Impacto Regulatório (AIR) apresentada no processo. “Foi uma péssima sinalização para o mercado. Os servidores [da agência] ofereceram critério de abusividade que foi ignorado”, afirmou o diretor-presidente da Logística Brasil, André de Seixas. Para a associação, a sobre-estadia de contêiner, à luz das leis brasileiras, precisa ter sua natureza definida porque o status quo leva à abusividade da cobrança e à sonegação fiscal.

A Logística Brasil, que apresentou denúncia sobre essas cobranças abusivas ao Tribunal de Contas da União (TCU), alega que indícios de sonegação fiscal fizeram com que a Corte de Contas determinasse, em processo de regulação de sobre-estadia de contêiner, o envio do processo à Receita Federal para apuração de sonegação fiscal. O TCU também determinou que a agência levasse em consideração a natureza jurídica da cobrança. “Entendemos que a diretoria da Antaq descumpriu a decisão do TCU no sentido de garantir modicidade de preços”, afirmou Seixas à Portos e Navios.

O entendimento da associação é que, ainda que não caiba à Antaq apurar sonegação fiscal, quando um órgão público verifica que há indícios, como apontou o TCU, ele tem por dever ajustar os normativos para que não haja sonegação fiscal. O argumento dos usuários é que o transportador marítimo não costuma comprovar que está recompondo o dano, como preveem as leis fiscais brasileiras sobre indenização. “O armador simplesmente cobra o que quer. É um mercado concentrado, com diversas falhas”, lamentou Seixas.

O diretor-presidente da Logística Brasil ponderou que a entidade continuará a apoiar a regulação no país e se manterá atuante na agenda setorial pró-regulação contra a emenda 54. Seixas ressaltou que é preciso separar o trabalho feito pelas áreas técnicas da decisão do colegiado. “Vamos tomar providencias, estamos estudando quais serão. Houve um retrocesso grande provocado pela decisão de diretoria. Estamos separando os ‘deveres de casa’ que os servidores da Antaq do segundo e do terceiro escalões fizeram. Quem deixou de fazê-lo foi a diretoria, que abriu mão de criar talvez um belo modelo de regulação para o mundo”, declarou.

Para a Associação de Usuários dos Portos da Bahia (Usuport), ao não estabelecer critérios com limites para a sobre-estadia, a diretoria da Antaq passa para a sociedade que está preocupada em tutelar terminais de contêiner e transportadores marítimos. “A decisão da diretoria colegiada em afirmar que não identificou elementos que comprovem a abusividade da cobrança de sobre-estadias é resultado direto do modo de atuação da agência — regulação ex-post — desconhecendo a realidade sob a qual os importadores e exportadores estão sujeitos no dia-a-dia”, afirmou o diretor-executivo da Usuport, Paulo Villa.

Ele considera que existe um processo de desindustrialização em curso no país e que a diretoria da Antaq, com este tipo de decisão, está contribuindo para que isto ocorra mais rapidamente. “Se a agência atuasse preventivamente, cumprindo seu papel legal, ex-ante, certamente, evitaria problemas e facilitaria o comércio exterior, dando grande contribuição ao Brasil, o contrário do que está acontecendo”, apontou Villa.

Para o advogado Osvaldo Agripino, que representa associações de usuários, essa foi a pior decisão da história da Antaq, por entender que ela protege armadores estrangeiros e agentes intermediários, que se aproveitam de um modelo ex-post de regulação ‘problemático’ da agência, das greves da aduana, do Ministério da Agricultura e Pecuária e de caminhoneiros, para cobrarem valores considerados ‘absurdos’. O jurista disse que os usuários foram surpreendidos com essa decisão da diretoria da Antaq, contrária aos estudos dos técnicos, que trabalharam quase três anos, e ouviram os usuários, indo na contramão da curva de aprendizado da agência.

“Um retrocesso. Estamos analisando os próximos passos e não gostaríamos de ir novamente ao TCU contra a Antaq. É uma luta de 10 anos. Decepcionante, pois depois de tudo isso, ironicamente, a diretoria ainda acredita que o usuário negocia o valor da diária de demurrage, quando ela é imposta, e que a maior parte dos problemas é resolvida nela, via denúncia do usuário”, afirmou o especialista do escritório Agripino & Ferreira.

Agripino alega que quase 100% das demandas são ajuizadas pelos credores no Judiciário que, diante de um valor abusivo, não têm critério do regulador, e a carga acaba condenada. “O armador tem na lei e nas convenções internacionais, a avaria grossa e a limitação da responsabilidade civil para reduzir o risco da sua operação. Ou seja, o Estado máximo para o armador e o Estado mínimo para quem paga a conta e tem o risco de pagar demurrage/detention em valores que podem chegar até 80 vezes o frete e 28 vezes o da carga”, criticou. “Esperamos que a diretoria reveja a sua decisão, totalmente desconectada com o que o usuário precisa e os estudos feitos por seus servidores, que questionam o status quo, que a diretoria manteve. É uma decisão contra o Brasil”, lamentou.

No voto contrário ao posicionamento da área técnica da Antaq e favorável à manutenção do status quo, a diretora-revisora justificou que não seria pertinente, neste momento, que a agência se manifestasse sobre a natureza jurídica da cobrança porque nem mesmo doutrinadores ou o poder judiciário chegaram ao entendimento consensual e também por haver dúvidas sobre a aplicação da natureza jurídica em relação ao Código Civil.

Fábio Barbalho Leite, sócio do Manesco Advogados, interpretou que o entendimento da Antaq de não propor normativa sobre a matéria no atual contexto da agência foi coerente com a decisão de não reconhecer abusividade na prática da cobrança de demurrage por armadores perante os importadores no Brasil, sem prejuízo de poder seguir apreciando situações concretas levadas a seu conhecimento por representações de interessados, como os usuários do porto, ou instâncias fiscalizadoras.

Barbalho Leite considera que o processo chegou ao fim após tomada de subsídios e produzida extensa análise da área técnica da Antaq. Ele avaliou que, numa rápida pesquisa na jurisprudência dos tribunais sobre o tema, se observa um maciço aval à cobrança, envolvendo as situações de reprimenda da cobrança quando diante de situações que possam ser atribuídas ao próprio armador ou em que a conta de cobrança incorra em desrespeito ao free time — período contratado em que autorizada a posse do contêiner pelo importador ou seu consignatório. Ou ainda em casos em que se tentou lançar a cobrança ao despachante aduaneiro, categoria a qual se entende não caber responsabilidade solidária em caso de demurrage.

“A decisão final da agência, porém, se bem analisada, trouxe uma brecha para a discussão da demurrage. É que, enquanto não tenha entendido haver um contexto de abusividade na cobrança, determinou que os armadores prestigiem a transparência na cobrança, fazendo tornar pública previamente todos os requisitos e condições relevantes da cobrança. A contrario sensu, portanto, ali onde ausente essa prévia clareza pode haver espaço para que o importador insurja-se quanto a algum aspecto da cobrança de demurrage. Justa brecha”, analisou Leite.

Camila Mendes Vianna Cardoso, sócia do Kincaid Mendes Vianna Advogados, também considera que a decisão da Antaq foi acertada e mantém o Brasil como um mercado competitivo frente ao cenário internacional. “A comparação com outras jurisdições marítimas ao redor do mundo provou que estamos dentro dos parâmetros internacionais e qualquer tentativa de intervenção estatal no preço do frete marítimo ou da demurrage (sobre-estadia de contêineres) seria prejudicial ao nosso país, criando um cenário de insegurança jurídica para qualquer empresa estrangeira que queira investir no Brasil”, comentou.

Para a advogada, o desfecho do tema na Antaq foi relevante do ponto de vista comercial, mas também do ponto de vista jurídico, uma vez que a diretoria da autarquia refutou a possibilidade de definição da natureza jurídica da demurrage, matéria que vem sendo abordada pelo poder Judiciário há mais de uma década. “Sem dúvida, precisamos melhorar a logística no Brasil para reduzir o tempo de espera dos navios e da retirada dos contêineres e toda a sociedade deve buscar uma maior eficiência no Brasil para sermos mais competitivos no comércio internacional”, analisou Camila.

O advogado Wesley Bento, considera que a decisão expressa uma autocontenção da agência, não somente em decorrência da controvérsia existente a respeito da natureza jurídica da demurrage de contêineres (de indenização propriamente dita, de remuneração dos transportadores ou de cláusula penal moratória), mas também da análise empírica que evidenciou que os preços de sobre-estadia no Brasil se assemelham ao cenário internacional e que o número de processos instaurados na temática da abusividade de cobrança de sobre-estadia não é representativo, quando comparadas ao número de transações de comércio exterior efetuadas no Brasil.

Bento ressaltou que a Antaq declarou que não ficou devidamente demonstrada com base em dados ou evidências a existência de uma falha de mercado decorrente da prática de preços abusivos na cobrança de sobre-estadia de contêineres que justifique a intervenção regulatória da agência. “Parece-me correta a opção da agência reguladora, cuja função precípua é de corrigir falhas de mercado no transporte marítimo, sobretudo diante da verificação da compatibilidade com os preços adotados no Brasil com o cenário internacional, que não justifica a excepcional intervenção nas relações jurídicas privadas”, disse.

O advogado, especialista em direito da infraestrutura e regulação e sócio da Bento Muniz Advocacia, lembrou que na decisão a Antaq se comprometeu a elaborar uma base de dados para fins de acompanhamento do comportamento de mercado de cobrança de demurrage, com vistas a realização de um diagnóstico futuro, o que ele considera adequado diante da ausência de identificação de problema regulatório no cenário atual.

O desenvolvimento de metodologia para determinar abusividade na cobrança de sobre-estadia de contêiner, tema 2.2 da Agenda regulatória (2021-2022), foi considerado cumprido pelo colegiado e arquivado. A Antaq determinou que as superintendências de regulação (SRG) e de Fiscalização e Coordenação das Unidades Regionais elaborem uma base de dados com vistas à realização de diagnóstico futuro.

Fonte: Com informações do site portosenavios.com.br, matéria publicada 28 de março de 2023